Georreferenciamento previsto no Código Florestal continua insatisfatório
Cinco anos depois da sanção do novo Código Florestal, a disputa entre ambientalistas e ruralistas ainda solta faíscas. Enquanto ativistas defendem que a legislação aprovada foi um retrocesso em relação à anterior — e têm respaldo em quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) que a questionam —, ruralistas tendem a defender a nova lei, apesar de uma série de críticas à sua implementação. Mas o novo código tem um trunfo: o Cadastro Ambiental Rural (CAR), um registro público, eletrônico e autodeclaratório de informações ambientais georreferenciadas de todos os imóveis rurais do país.
Segundo avaliação do Observatório do Código Florestal sobre a implementação da nova lei entre 2012 e 2016, dos 14 principais pontos regulamentados pela legislação, apenas um, as inscrições do CAR, têm grau de implementação satisfatório.
Até o fim de abril deste ano, foram inscritos 4,1 milhões de imóveis privados, de comunidades tradicionais e de assentamentos da reforma agrária, ocupando aproximadamente 433,5 milhões de hectares. Após duas prorrogações do prazo de inscrição, o limite para que este procedimento seja feito é, hoje, 31 de dezembro de 2017 — mas alguns apostam em uma nova data em 2018.
Prazos extrapolados
Depois que o cadastro é feito pelos proprietários, os estados devem cumprir suas obrigações. Primeiro, com a análise das informações cadastradas, e então com a celebração de contratos para que os proprietários ajustem as irregularidades ambientais constatadas nos cadastros — através do chamado Programa de Regularização Ambiental (PRA). Para isso, porém, os estados precisam já ter regulamentado seu próprio programa.
Segundo um levantamento inédito feito pelo GLOBO com todos os estados do país, apenas nove deles começaram a fazer as análises dos cadastros. Treze têm o PRA regulamentado ao menos via normas gerais — mesmo que o prazo para a implantação destes programas fosse, em teoria, 2014. A celebração de termos de compromisso do PRA só começou a ser feita em quatro estados, alguns de forma incipiente: Acre, Bahia, Mato Grosso do Sul e Pará.
Nos últimos cinco anos, o governo federal, por meio do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) destinou R$ 28 milhões ao desenvolvimento de módulos e armazenamento de dados do Sicar (software desenvolvido para agregar as informações do CAR), em parceria com a Universidade Federal de Lavras (UFLA), em Minas Gerais.O órgão pretende disponibilizar um módulo de análise para 21 estados até o fim do ano. Em outra frente, um módulo genérico para o PRA — uma vez que cada estado terá regras próprias para seus programas — está em fase de testes.
A agrônoma e consultora ambiental Gabriela Savian, que acompanha a implementação do CAR desde 2013, diz que enquanto há avanços em alguns estados, em outros há uma inércia na implementação deste mecanismo. Alguns optam por esperar ações e ferramentas do governo federal, mas outros estão analisando os cadastros e executando o PRA em softwares próprios, como é o caso do Pará, Mato Grosso do Sul e Bahia, ou em módulos do Sicar customizados, como no Acre e Rondônia.
— No caso do PRA, os prazos da lei foram extrapolados, tanto pelo governo federal quanto pelos estados. Agora, o governo federal já fez a regulamentação das normas gerais que lhe cabia fazer, e é responsabilidade dos estados regulamentar e implementar a recuperação dos passivos ambientais. Eles estão esperando o módulo do PRA para fazer a regulamentação, mas estão errados de esperar por isso. Falta um protagonismo nesses casos — aponta Gabriela.
Na avaliação feita pelo Observatório do Código Florestal para os anos de 2012 a 2016, os autores do documento alertam para outro aspecto preocupante da lentidão: “O principal risco associado à eventual demora ou retardamento na análise do CAR (…) é que os benefícios ‘automáticos’ gerados apenas com a inscrição no CAR poderão criar uma sensação de anistia geral e de impunidade quanto às irregularidades ambientais cometidas e, também, de desoneração da obrigação de recomposição dos passivos florestais”.
Para Rodrigo Justus, consultor da Comissão do Meio Ambiente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a demora na aplicação da lei causa apreensão também no setor agropecuário.
— Os produtores não viram o direito de regularização de suas propriedades se efetivar. A maior parte dos governos, por exemplo, não tem corpo técnico para fazer o trabalho de análise. Os técnicos já estão saturados com o licenciamento ambiental, e agora serão despejados milhões de cadastros em cima deles. Do jeito que está, o processo vai demorar 20 anos.
A família de José de Castilho, de 65 anos, cadastrou suas propriedades, no município fluminense de Rio Claro, em 2016. Apesar da análise dos mais de 40 mil imóveis já cadastrados no estado só ter começado em maio, ele está tranquilo: a família manteve a vegetação nativa às margens dos rios que cortam as propriedades desde que adquiriu as terras, há mais de 50 anos. Nelas, eles produzem verduras, legumes e frutas, além de leite e queijo.
Ele e a irmã, Edna Mariano de Castilho, fizeram os cadastros com auxílio de técnicos do governo estadual. O cadastro é gratuito, mas por envolver procedimentos técnicos como o mapeamento em imagens de satélite, alguns proprietários optam por contratar uma consultoria. No caso dos pequenos proprietários, os estados são obrigados a fornecer assistência técnica. Entre os estímulos para que esta inscrição seja feita, está a exigência do cadastro, a partir de 2018, para a concessão de crédito a produtores rurais por bancos.
Em relação à Reserva Legal, José e Edna sabem que precisam manter de pé quatro hectares de mata, o equivalente a 20% da área de sua fazenda. Proteger a nascente que brota nela, cujo entorno é preservado como Área de Proteção Permanente (APP) é, para o agricultor, garantir a continuidade de um precioso recurso:
— A água é o que se prioriza em uma propriedade. Sempre usamos a água desse riacho para nossa produção e consumo — diz José, que conta com orgulho ter sido “nascido e criado na roça”.
Mudanças polêmicas
O CAR se baseia na definição de “áreas consolidadas” — aquelas ocupadas com edificações e plantio, por exemplo, antes de 2008. Mesmo que estas áreas não estivessem cumprindo a legislação ambiental vigente naquele ano, elas podem começar a se regularizar ao fazer o cadastro, segundo determinou o novo código. E é isso que muitos ambientalistas chamam de “anistia”: o perdão a irregularidades cometidas antes da instituição da nova lei.
No caso das APPs nas margens de nascentes, rios e outros cursos d’água, há um regime especial para quem desmatou até 2008 — por “especial”, leia-se exigência de faixas preservadas menores. Já no que diz respeito às Reservas Legais (RL) — uma parcela de 20% a 80% da vegetação nativa das propriedades que deve ser conservada —, o novo código isentou sua recomposição em imóveis consolidados e pequenos, de até quatro módulos fiscais.
Para aquelas que precisarão regularizar suas RL, uma opção será a compra das Cotas de Reserva Ambiental (CRA), um título representativo de cobertura vegetal que poderá ser comercializado em uma espécie de mercado de ações. O mecanismo foi criado pelo novo código e o governo federal estuda atualmente um modelo — algo que os ambientalistas esperam com ansiedade, uma vez que a proteção da vegetação excedente poderá ser aumentada, tornando inclusive o Brasil mais próximo de suas metas de cobertura florestal no Acordo de Paris.
Fonte: O Globo